Ou: simples como a infância
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Fernando Pessoa )
Quando criança, aprendi muitas coisas que só agora sou realmente capaz de compreender, embora, muitas vezes seja ainda incapaz de compor ao meu dia-a-dia. Naquela época, havia mais tempo. Os dias eram mais longos e a vida mais leve.
Assim como a maioria das crianças, eu tinha medo de ficar sozinha. E por muito tempo fiquei só. A casa não tinha tantos cômodos como tem hoje, mas parecia ter o triplo do tamanho - era enorme. E eu, pequena e insignificante no interior dela. Também tinha medo do escuro e do silêncio.
A minha sorte foi que desde cedo aprendi a colecionar versos, a decifrá-los e a acreditar neles. “Quem canta, os males espanta”, dizia um. Então eu cantava. E cantava em voz alta. E cantava tudo. E brincava de saltar pela casa, ligar TV, som, tudo de uma vez. Ficava imaginando que todo e qualquer mal tivessem medo da música. Monstros, fantasmas, seres do além, a mulher de branco do banheiro do Instituto São José, o boneco assassino do Fofão, bichos d’outro planeta. Todos eles se espantavam e iam embora quando eu cantava.
Eu já sabia que música era como um manto de proteção.
Hoje eu percebo que para tudo na vida existe uma canção, um verso, um ritmo. Para qualquer medo, qualquer aperto, qualquer saudade, qualquer dor, há uma música que conforta. Não é à toa que coleciono alguma meia-dúzia de ex-banda e alguns poemas órfãos de acordes. “Eu só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”, me peguei cantando hoje no banheiro. E lembrei o quanto a música melhora e facilita tudo.
E em toda a fase da vida somos convidados a bailar num determinado ritmo. Ora ele apruma pra um tempo que encaixa direitinho com o qual nos sentimos preparados. Passinho-pra-cá-passinho-pra-lá. Ora arriscamos piruetas, saltos e tanto tipo de rebolado. Ora tropeçamos, damos pisão no pé, caímos. Às vezes a gente senta, toma um fôlego e volta para a pista. Há danças que dançamos junto, há danças que dançamos só.
E há momento em que este mesmo verbo sinaliza um fracasso: dancei.
Independente de qualquer coisa, a música sempre vai continuar e exigir o bailado certo, assim como que para qualquer percepção, haverá sempre uma razão. Ou aprendemos a olhar, a ouvir e a entrar n'outros ritmos, ou vamos acreditar que só é possível uma única trilha...